Laços que sufocam

Laboratório Invisível
5 min readDec 10, 2020

Uma das reflexões que tive nessa quarentena, já no final do ano, foi ouvindo uma live. Resolvi dar uma caminhada, peguei a máscara, coloquei os fones e me lancei em busca de um pico elevado pra assistir o pôr do sol. Quem me falava era o DJ Coala, um artista e professor que admiro muito. Ele elencou os 5 maiores aprendizados que teve durante a pandemia. Um deles foi: valorizar mais o contato humano. Às vezes, por mais que valorizemos algo, a rotina nos confunde e deixamos passar detalhes, coisas pequenas da vida, nossas prioridades se invertem e perdemos a referência.

Ele citou um exemplo: podemos ter um colega que não pensa da mesma forma que nós, mas tendo essa consciência ampliada, o conflito se torna um convite para apaziguar os ânimos e aproveitar o que há em comum. Isso, entretanto, só me fez lembrar da minha experiência pessoal dos últimos dias. Obviamente a mesma mensagem reverbera de forma diferente em cada um. No meu caso me fez pensar justamente o oposto. Interessante lembrar que quando imaginamos algo, automaticamente nos vem à mente seu oposto, pois quando definimos algo, em geral, essa mesma coisa também significa: diferente de todo resto. Pensamos no “quente”, mas podemos pensar em “algo que não é frio”.

Nesse caso estamos falando de relações interpessoais. O isolamento fez o Coala perceber como as conexões são importantes. E sua colocação me fez ver como a valorização dessas conexões às vezes pode inclusive ser aplicada em certos "abortos", ou pelo menos no distanciamento e esfriamento intencional de certas companhias. Porque? Pois na solitude, percebemos como é valioso o tempo para si, que muitas vezes é sugado por um vórtice social, rolês, amizades e compromissos externos. Uma vez se reconectando consigo mesmo, definindo seu espaço, podemos olhar de forma neutra, desapegada para entender nosso lugar no macro.

Vê-se necessário classificar o que é oportuno para nosso crescimento e realização pessoal, no caso: as conexões que de fato nos alimentam, as quais fazemos questão de doar e que estimamos mais, as relações saudáveis. Porém fazendo isso, conseguimos botar em paralelo outras dinâmicas que se apresentam como doentias, inertes, parasitárias.

Portanto, se você se valoriza, você valoriza seu tempo. Também passa a valorizar mais suas conexões e fazer o melhor uso delas, no momento mais oportuno de forma construtiva. - Um outro pensamento que guardo do passado é: se você valoriza a si, valoriza também suas amizades, pois elas te constroem, te definem, e se você quer ser melhor, também quer que seus amigos floresçam. - Mas você define seus limites. Para isso é necessário aprender a dizer “não”. Depois que você tiver satisfeito suas próprias demandas, curtido seu espaço poderá realmente trocar com as companhias fora do ciclo de dependência mútua.

Já sentado numa pedra e observando a paisagem, pensei que nesse cenário mais lúcido, equilibrado, não caberia mais relações super desgastantes, pois estão ocupando tempo precioso para se passar com quem realmente importa, fora que estão ocupando sua cabeça com problemas desnecessários. Aí que entra a parte do "aborto". Para valorizar seu jardim, deve-se livrar das ervas daninhas. Para essa poda, talvez não seja nem necessário uma ruptura completa da relação, apesar de que muitas vezes é só com um longo período “offline” que passamos a enxergar as coisas melhor para agir mais conscientes, livres da manipulação. Porém, um simples basta, uma reconfiguração relacional, novas regras para distinguir contextos já pode ser o suficiente.

Uma amizade ou amor pode se tornar um amálgama, tão disforme a ponto de não compreendermos nem ser possível lidar racionalmente, pois ele nos surpreende sempre com um ataque furtivo. Não sabemos nem a diferença entre nosso próprio “corpo” e do outro. Nesse caso, qualquer mudança drástica é como se fosse um assassinato, pois nos identificamos com a relação e se ela se transforma, parece que parte de nós não existe mais. É como quando um casal se relaciona sexualmente por um longo período e para repentinamente continuando apenas a amizade. Em geral, os dois vão sentir falta (quando não é o caso de perda dos desejos antes do rompimento), estavam acostumados com aquela companhia noturna, intimidade, a relação era uma e de repente mudou, a relação morre e surge uma nova dinâmica, agora um novo mundo se inicia, amizade permanece. Também é como quando a relação consigo mesmo muda radicalmente: paramos de fumar, ou abandonamos uma atividade importante, ou quando mudamos de cidade. Aquela pessoa morre, surge então uma nova vida e prazeres que se manifestam de formas inimagináveis.

Na verdade nada nunca morre, talvez só haja 1 vida e 1 morte ou até mesmo 1 só vida e não-vida, essa vida se transforma, mas sempre permanece e surge com outras faces. Nós que nos identificamos com o corpo, com relações, com hábitos, e de fato essas coisas morrem, mas elas nunca foram vitais, não para você e se foram, quele "eu" também morreu ou sofre e reclama. Nós somos um emaranhado de identificações, nossos dedos, casa, medos, roupas e tradições. Quando elas são tiradas de nós, nos sentimos desnudos, vazios, desamparados. Talvez você possa até morrer, mas só enquanto estiver identificado com o que perece. Aquela mentalidade pode ter vida própria enquanto a relação dura, ou talvez viesse mesmo de antes, caso a relação seja consequência de uma outra mentalidade maior, como uma tradição, cultura e assim por diante (se for um casamento arranjado por ex.). E a sua realização fortalece antes de você, outra coisa.

Nossos interesses são maleáveis e dependem da nossa mentalidade. Um namoro tem vontade própria, você sozinho tem outra. Cabe refletir se desejam comungar dessa terceira vontade. Você é único. Penso que somos muito mais específicos (talvez paradoxalmente mais amplo) do que pensamos, pois temos camadas e camadas de ilusões cognitivas, falsa identificação que complicam a equação. Cada organismo faz uso da vida e tem seus próprios objetivos. Então saiba muito bem quais são os organismos que você deseja se conectar, isso não se refere apenas às pessoas, mas crenças, hábitos, tradições, sistemas, doutrinas, empresas etc. Tenha consciência se está se envolvendo em uma relação parasitária ou de mutualismo e de qual papel você está encarnando.

No meu caso, eu sinto que estou me dando conta cada vez mais da minha vocação. Não só isso, mas valorizando meus talentos e meu corpo (veículos e ferramentas) apesar dos tropeços pelo caminho. Cada vez mais quero abrir espaço para que minha vida seja renovada. Sei da importância do passado, mas por isso mesmo quero que o que venha esteja à altura do que ainda guardo. Sei também que posso errar e me arrepender, mas estou disposto a arriscar e matar parte de mim, abandonar relações que julgue apodrecidas. Que a liberdade de lapidar minha existência prepondere sobre um senso de responsabilidade imposto por uma sociedade doente. Que eu me liberte das correntes cristãs de ver a penitência como única forma de salvação. Quero podar, para justamente cuidar melhor de quem permanecer ao meu redor e principalmente cuidar de melhor de mim mesmo.

Vivemos em um mundo da acumulação, tanto material quanto de ideias e conexões. É tanta poluição que nos perdemos na fumaça. Existe o fenômeno das relações descartáveis sim. Mas por outro lado, querer abraçar o mundo e se apegar a todos que passam em minha vida, impede que eu abrace quem realmente merece cuidado.

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